Planeta das Galinhas

Era o último fósforo da caixa com as laterais já gastas. Com a falta de eletricidade na velha cabana, seu dono aproveitava o filete de luz que surgia da ponta do palito para acender o fogão à lenha. Sobre a grande peça feita de barro, um caldeirão alto, de cobre, cheio d’água até a borda.  Ao lado, mas abaixo, um cesto trançado em palha abrigava a convidada ao banho quente.

As chamas em meio aos pequenos troncos projetavam a sombra do peão na parede embolorada. O movimento do fogo que colocou a água para ferver parecia fazer o cesto dançar. Mas estava parado, do mesmo jeito que o animal embaixo dele. O homem mal vestido e sujo da roça então levantou vagarosamente o artesanato feito por ele mesmo e agarrou o bicho pelo pescoço.

A galinha pouco se mexeu e manteve suas asas abertas enquanto a água no caldeirão fervia sob suas patas. Com a mão esquerda, o peão segurou a base do pescoço do animal indefeso e com a outra agarrou a cabeça envolvendo seu bico. Com um único movimento, o caipira quebraria o pescoço da ave de penas beges para depois começar a arrencá-las aos maços.

Com o balanço de uma das chamas em volta da lenha, a grande unha da galinha perfurou o pulso do peão. O homem gritou de dor sem entender o que havia acontecido. Ainda assim segurou o pescoço da penosa com a mão esquerda. Enquanto pensou em colocar o bicho de volta no cesto para estancar o sangue que pingava no chão batido, ele urrou com tamanha violência que pequenos morcegos voaram do assoalho da cabana. A mesma unha atravessou o outro pulso do peão. Fez o sangue vazar sobre os pelos do braço do homem, enquanto era puxada de volta dos tendões próximos à mão do caipira.

Ao soltar o animal, o barbado não acreditava no que estava acontecendo. Sabia que havia sido atacado e que era por uma galinha. Apavorado, porém pronto para matar de vez o bicho, ele avançou rumo a ela em direção ao fogão. Usando as duas patas, a galinha arrancou dois maços de suas próprias penas e com um impulso de suas asas, atingiu a altura do rosto sujo do homem. Com uma força que não vinha de seu pequeno corpo, as patas fincaram as pontas dos montes de penas nos olhos do caipira. Perfuraram suas córneas. O urro foi ainda mais forte, mas a fazenda distante da cidade só possuía uma granja além da cabana.

Com as mãos sobre os olhos, encolhido no chão de terra ao lado do fogão à lenha, o caipira chorava e sangrava. O olhar vidrado da galinha o observava de cima das prateleiras ajeitadas na pequena cozinha. Em um movimento que cortou o ar do espaço apertado, a beginha derrubou a prateleira fazendo as panelas caírem sobre o fogão, derrubando o grande caldeirão fervendo sobre o rosto do peão.

Descendo do teto da granja da fazenda, a galinha vinha de poleiro em puleiro acordando as amigas de sua espécie. Vistas de cima do telhado do local pareciam pipocas se movendo rumo ao chão. O pequeno mar de pequenas seguiu pela estradinha que levava à cidade. Todas lideradas pela galinha bege.


Prólogo

Tive o prazer de passar os últimos dias em Porto Alegre (RS), capital de gaúchos simpáticos e de clima muito agradável – comparado a Ribeirão Preto (SP). Entre idas e vindas pelo Rio Grande do Sul, fiquei impressionado com a hospitalidade deste pessoal.
Em mais um dia de trabalho na temperatura que chegou a oito graus, eu aguardava o trem que me levaria até Esteio, região metropolitana da capital. Atento à faixa amarela que marca a distância segura da plataforma, desviei o olhar distraído para o teto da estação quando vi a cena mais bizarra que já presenciei.

Descendo pela lateral do enorme teto sobre todos ali, uma galinha. Bege, com as asas bem abertas, com uma das patas presa por uma corda. De cara, não entendi o que era aquilo. Não sabia se o animal estava sequer vivo, até que ela mexeu a pata solta que estava encolhida. E descia lentamente pela corda que era liberada por alguém no telhado da estação.

Foi quando o trem começou a se aproximar que entendi o que era aquela situação. Quanto mais perto a máquina, mais corda davam para baixar o animal. Já muito perto da estação e da galinha, o trem avançou e acorda soltou.

Senti algo tão estranho que mal consigo explicar. Tive ansia de vômito e ao mesmo tempo não acreditava no que eu vi. Desacreditado na situação e no ser humano. Quem teria feito aquilo?

Felizmente, no momento em que soltaram a galinha rumo aos trilhos, a corda balançou e o animal caiu do outro lado do muro, fora da estação de trem. A pequena era coberta por penas beges e depois de se salvar desta, não imagino para onde ela pode ter ido.


* Texto inspirado na situação vivida em Porto Alegre (RS) na semana passada e no filme em cartaz nos cinemas, “Planeta dos Macacos: a Origem”. Vale comentar!

Comentários

Rodrigo Ziviani disse…
Má, muito legal, mas corrija aí: é "eletricidade", ok? E "poleiro" em vez de "puleiro", certo? Bjo.
Ahauahuahua... NÚH!

Isso que dá escrever direto no Blogger e sem revisar. Valeu, lindão. Bjo
Paty Michele disse…
Hoje li uma frase no FB que pode ilustrar bem o meu comentário.
"Se acha mais forte que uma galinha? Tenta botar um ovo!"

abçs
Poxa, Paty, SENSACIONAL.
Isso resume até mesmo a proposta desta minha crônica.

Muito bom.

:: :: "Se acha mais forte que uma galinha? Tenta botar um ovo!" ::

Obrigado por dividir com o VJ!
Bjos, lindona.
Unknown disse…
Fioti do céu!!!Quê isso, mininu! Que texto genial! Vc tá crescendo muito literariamente, tô muito orgulhosa docê, viu? Beijão, com saudade. Mamãe te ama.
Hehehe, obrigado, mamãe! Tem melhor orgulho que este de mãe? rsrs

Saudade também! Preciso passar mais no 'Pimenta'. Correreia.

Um beijo. Adoro vc.
Kathlen disse…
Muito legal cara! Me lembra a Fuga das galinhas mas é muito mais, principalmente depois de ler o prólogo. Adoro isso de escrever o que vê (com os olhos da imaginação) e nem todos os escritores são assim... Mas foi uma bela dedicatória a galinha Bege.
Obrigado DEMAIS, Kathlen! E seja muito BEM-VINDA ao VJ!

É mesmo muito gostoso brincar com essa liberdade que temos quando escrevemos.

Farei uma visita com calma ao Kathlen's World!

E salve a galinha bege!!! hehe
Beijaço!