Sobre a vida gourmetizada



Por Lucimara Souza


É fácil perceber que a vida se tornou gourmet. Aderir ao estilo gourmet tornou-se moda. Já existem vários textos e teorias sobre o assunto.

Comidas mudaram de nome, roupas mudaram de nome, pessoas, profissões e estabelecimentos comerciais mudaram de nome.

O famoso e bom torresmo com sal e limão virou cútis de suíno flambada com lascas de fruta cítrica, temperada com ervas e sal do Himalaia. O cachorro-quente tornou-se hotdog com salsicha assada no vinagrete de tomates orgânicos, com queijo coalho e cebola empanada. Ah, agora ele também é servido naqueles carrinhos de lanche, chamados recentemente de food truck.

É careta pedir suco de laranja. A moda está em ingerir pouco mais de 100 ml de suco de goji berry, chia ou chá de hibisco após a aula de crossfit. Quanta frescura!

O simples brigadeiro ganhou castanhas e disfarçou-se de brigadeiro gourmet trufado com chocolate belga e castanhas do pará caramelizadas. A macarronada transformou-se no fettuccine feito de trigo cultivado na Síria, acompanhado de lascas de picanha e pimentões salteados na manteiga alemã.

Tudo o que custava no máximo 20 reais para servir 2 pessoas, hoje custa 70 em prato individual. O povo – o pobre metido a rico principalmente – acha chique, pois até o empratamento é gourmet. Dá pra tirar selfie e postar nas redes sociais.

Ovo gourmet, gente? Pamonha? Não, não pode! Pra quê isso?

A calça boca de sino tornou-se flare. O colã é o atual body, normalmente uma peça de costas desnudas e uma super aparente transparência na altura dos seios. A blusa mostrando a barriga – nem sempre aquele tipo tanquinho sarado gourmet – virou top cropped. Aqueles casacões para frio de 10o se tornaram o Trench Coat, e o casaquinho de lã curto só é chamado de Cardigan agora. E as calças rasgadas? Atualmente são destroyed e, apesar de terem pouco tecido, seu custo é três vezes maior que o de uma calça jeans tradicional. Mas, de todos, o mais fofo é o nome das blusas de bolinhas: blusinhas de poá. Muito cute, não é?

Esses dias li a propaganda de uma loja que anunciava: inovação em roupas para o mundo gourmet. O quê? Reli. Era isso mesmo. Fiquei assustada.

Não menos que no dia em que fui tentar entender o porquê começaram a chamar o paquera, a paixão passageira de crush. Isso não dá sensação de real interesse. Engraçado é que o termo saiu do mundo do adolescente e das redes sociais e tomou grandes proporções na vida real.

A pessoa que dava palestra motivacional se autodenomina Coach nos tempos gourmet. Tem boa oratória e é especializada em Coaching, uma metodologia de desenvolvimento e capacitação humana que acelera resultados. É um treinador que leva a pessoa a criar vergonha na cara, tirar a bunda do sofá e acordar pra vida. Afinal, sucesso não cai igual chuva do céu.

Bem, falar em gourmetização da vida sem falar da gourmetização das casas também não dá. Já ouviu falar em home organizer? Há profissionais que organizam os lares quando os donos têm preguiça. Está na moda isso.

A decoração da casa também é gourmet. Muito amarelo, turquesa e vermelho, misturados ao vintage, o estilo mais romântico e delicado que traz peças retrô. A pessoa fala assim só pra não dizer que têm móveis da bisavó em casa.

Sinceramente, eu não tenho salário gourmet para bancar uma vida gourmet. Meu prato preferido continuará sendo arroz, feijão, bife e salada de alface. A calça jeans tradicional e a camiseta branca serão minhas queridas além da vida, e lojas de departamento meus eternos amores. Minha varanda não vai ser gourmet, não terei móvel amarelo ovo, tampouco geladeira “envelopada” de papel contact – afff!

Em alguma ocasião especial até aceitarei comer o tal fettuccine feito de trigo cultivado na Síria, acompanhado de lascas de picanha e pimentões salteados na manteiga alemã, no entanto, o churrasco com farofa, arroz branco e o vinagrete não-gourmet agradará muito mais meu paladar e ajudará a completar com simplicidade a felicidade dos meus dias.



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Lucimara Souza

Conheci a Lu muito antes de Facebook. Quando blogueiros seguiam blogueiros exclusivamente pelos desktops. Essa diva das palavras é delicada no sorriso, no jeito de falar, mas com voz e pensamento fortes, típicos de quem nasceu para inspirar.

Ela é formada em Letras, Pedagogia e especialista em Comunicação: linguagens midiáticas, atualmente professora. Aprecia a escrita permeada pela criatividade, humor e certa dose de sarcasmo.


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