Em
2008 ouvi e li Martha Medeiros pela primeira vez. Fomos apresentados – somente
ela a mim, claro – pela internet quando rolaram as notícias sobre a adaptação
de seu livro “Divã” aos cinemas – lançado em 2009. Depois de experimentar
alguns de seus textos, esbarrei na coletânea de crônicas “Doidas e Santas”
(2008). Folheei. Comprei. Devorei.
De
lá para cá, minha relação com a autora é essa: a cada lançamento, um novo
momento entre a gente. Nunca estive em terapia – não que eu não precise, tá? –
mas essa lindaça funciona como tal para mim. Me faz pensar. Me faz bem demais.
A cada crônica, Martha nos oferece
aprendizado, leveza e intensidade sobre seus gostos e irritações, sua vida e
seu olhar sobre o alheio.
Acabo
de ler sua mais recente coletânea, “Quem diria que viver ia dar nisso”, com
textos de 2016 e 2017, originalmente publicados em suas colunas nos jornais
Zero Hora e O Globo. O mais gostoso destes dez anos de leitura é ver o quanto
seus assuntos mudam, amadurecem, enquanto ela não perde sua abertura para novas
experiências, porém, sempre fiel à sua essência.
Desde
“Simples Assim” (2015), é possível ver a autora escrevendo sobre coisas “menos
gostosas”, como política, religião e noticiário. Ela assume sua falta de graça
pela coisa, mas não se nega a falar do que é relevante quando o assunto é o
comportamento dessa raça que por vezes acerta e – muitas outras vezes – erra.
Eu
gosto da Martha que fala sobre amor, sobre relacionamento, sobre convenções e
esquisitices inventadas pelas pessoas, com seu olhar aberto, sereno e experiente por
conviver demais, se expor de menos e viajar em si e por aí. Amo a coletânea dos
anos 90, “Non Stop”, publicada em 2000, com o meu texto favorito dela: “Amor e perseguição”.
Há
muito dessa Martha mais “experimental” por lá. Depois fico com “Coisas da Vida”
(2005), “Feliz por Nada” (2011) e “A Graça da Coisa” (2013).
Dos
seus romances, “Fora de Mim” é um inacreditável passeio em diferentes tipos de
relacionamentos e o que viver cada um deles desperta em uma mesma pessoa.
Essa
publicitária que se libertou para a escrita está sempre no Caneca, veja
outros posts aqui.
Desta
última leitura, separei as minhas duas crônicas favoritas para compartilhar com
vocês. Martha Medeiros me inspira, me melhora.
A pessoa certa
Algumas
frases se propagam sem que saibamos quem é o verdadeiro autor. É o caso de
"Enquanto não surge o homem certo, vou me divertindo com os errados",
que eu ouvi pela primeira vez num programa da Marilia Gabriela – ou será que li
numa camiseta? Que a frase é espirituosa, nem se discute, mas é uma cilada:
acreditar que existe a pessoa certa é a razão dos nossos problemas de
relacionamento. Por que a gente insiste em acreditar em lendas?
Essa
entidade abstrata – a pessoa certa – é aquela que vai entender todas as suas
manias, vai adivinhar quando você quiser ficar em silêncio, terá o corpo e a
rosto que você idealizou em seus delírios românticos e a sua mãe – a sua, não
dela – vai aprovar sua escolha assim que abrir a porta da sala de visita.
Bastará uma rastreada com o olhar e logo ela piscará pra você como quem diz:
agora sim.
Agora
sim o quê? Agora você pensa que encontrou alguém com quem não irá brigar jamais
e que vai ser encaixar com perfeição na sua ambiciosa procura pela pessoa
certa, esta que (atenção, spoiler) não existe.
A
pessoa certa pra você é a errada. Lembra da pessoa errada?
Morava
no cafundó do Judas. Ria alto. Não entendia muito os filmes de que você
gostava, mas fazia comentários deliciosos a respeito. Era muito mais velha que
você. Ou muito mais jovem que você. Não parava em emprego algum e sua coleção
de ex era preocupante. Que saudade da pessoa errada.
Nunca
acertou um único presente – mas lembrava de todas as datas. Depois de uma hora
e meia ao telefone, queria falar um pouco mais e ficava triste se você sugeria
que desligassem. Como amava você a pessoa errada.
Não
conhecia nenhum de seus amigos. Nem você os dela. Fumava demais. Ou bebia
demais. Ou ambos. Mas nunca teve passagem pela polícia. A fissura por previsões
astrológicas era meio exagerada, e já estava na hora de aprender a arrumar a
bagunça que era seu apartamento, mas nunca deixou de sair do banho perfumada. E
molhando o chão do quarto, claro. Era a incorreção mais bem-vinda para aquele
seu momento de entressafra, não era?
Até
que surgiu a pessoa certa. Toda a família comemorou e os amigos respiraram
aliviados: agora sim, você tinha alguém a sua altura, agora sim, você não
precisaria mais passar por altos e baixos, agora sim, nunca mais um barraco,
nenhuma surpresa. Agora sim, um casal padrão.
Quase
posso ver você, daqui a uns meses, usando uma camiseta que diz: "Enquanto
não surge a pessoa errada, vou me entediando com as certinhas".
4
de março de 2017
CRÉDITO Publicação original no ZH
Tem homem no mercado
Aconteceu
há algum tempo no Rio. Uma mulher colocou um anúncio classificado no jornal em
busca de um homem que fosse disponível, hétero e que ganhasse ao menos dois mil
reais por mês. Se era piada, funcionou, porque gerou boas gargalhadas. Esta
"mulher solteira procura" não reivindicou honestidade, inteligência,
bom humor ou conhecimento geral – resumiu-se ao básico do básico. Que o
"produto" não tivesse compromisso com ninguém, que gostasse de mulher
e pagasse suas próprias contas.
O
que significa que o que sobra por aí é justamente o oposto. A comunidade gay só
aumenta. Se o candidato for surpreendentemente hétero, é provável que tenha
alguma namorada escondida na manga. E se for hétero, livre e desimpedido,
maravilha – mas talvez não tenha grana nem para um pastel de vento, vai
encarar?
Vai.
Porque
o que mais se propaga por aí é a frase "Não tem homem no mercado", e
a mulherada que, como se sabe, não faz outra coisa na vida a não ser se dedicar
às pesquisas no súper, se apavora e acaba aceitando qualquer promoção. Homem
duro? Serve. Homem casado? Serve. Homem que mora com a mãe aos 45 anos? Serve.
Sendo homem, serve.
Até
que o cenário piora: é bandido? Serve. Desrespeita você? Serve. Bate em você?
Serve.
Aí
a mulher morre nas mãos desse delinquente e ninguém entende.
Vamos
dar um rewind? Começando por parar de divulgar essa ameaça boba de que não tem
homem no mercado. Tem, sim. Tem um monte de homem solteiro, separado e viúvo
que sonha em encontrar uma mulher madura, companheira e independente. É verdade
que há mais mulheres no mundo do que homens, a vantagem é deles, mas apostar no
desabastecimento das gôndolas é o caminho mais curto para fazer bobagem. Você
acaba se contentando com o que sobrou no fundo da prateleira, já com o prazo de
validade vencido.
Quando
vemos um homem sem mulher, pensamos: é porque ele não quer uma.
Quando
vemos uma mulher sem homem, pensamos: é porque nenhum deles a quis.
Se
insistirmos nessa mentalidade medieval, continuaremos propensas a aceitar
qualquer carne de pescoço que se passe por filé. Não há por aí quem diga que
somos especialistas em detectar os desajustes de ofertas? Então, vamos tratar
de pesquisar bem e levar coisa melhor pra casa.
18 de março de 2017
CRÉDITO Publicação original no ZH
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