O livro meu

 


Queria que o interfone tocasse, a porteira que costuma estar às terças e quintas me avisasse com aquela empolgação fora de noção – típica de menina nova, animada com primeiro emprego – e eu fosse até a entrada do condomínio porque chegou o livro que eu queria.

Um livro que não pedi, mas que esperei muito. Quando abro o pacote e vejo sua capa, não sei explicar como ela é. Sinto que ela me atrai, que traz minha atenção para mim mesmo, que some com tudo que tem em volta. É uma capa que me dá uma alegria tranquila, sem entusiasmo, uma seriedade gostosa, sem melancolia.

Não sei mais onde estou, mas não é um lugar que costumo estar de segunda a segunda. Não sei se uso óculos para a leitura, se de pé, deitado ou sentado, a história simplesmente acontece em minha cabeça e aos poucos preenche o meu corpo também a cada virada de páginas em que não vejo letras.

Neste livro a protagonista usa uma blusa leve, branca, pouco transparente, estampada com grandes flores alaranjadas, a história se passa quase toda de dia, com o sol que não queima o rosto dela, com um vento que despenteia seu cabelo só para mostrar para ela que não existe vaidade com a qual se preocupar, que tudo acontece da forma que é para que ela simplesmente se sinta bem, se curta a cada novo dia.

A personagem passa pelos capítulos com responsabilidade sobre sua vida, uma adulta de quarenta e poucos, que sorri tranquila, não por viver como uma boba, mas por saber e poder viver com aquilo que a torna cada dia melhor como pessoa.

Ela não passa o dia com os olhos em telas, nunca ouviu falar sobre estupro, sobre o que é doloso, sobre o que é culposo, sobre qualquer gestor vaidoso.

Ela descansa sem contagens de votos ao seu redor, sem chamadas dos números mais doidos em seu celular.

Transa com naturalidade, sem periodicidade, com qualidade e sem qualquer tipo de dificuldade.

Eu leio mais e mais sobre ela lendo, aprendendo, compartilhando com outras pessoas e evoluindo. Volto a mim e penso, como ela consegue? Tudo parece tão real e possível em sua vida... Como ela não se desgasta? Não empaca em situações irrelevantes que os outros impõem como se fossem a decisão sobre o destino da humanidade?

Ela dorme pouco e descansa tanto. Ela não viaja, mas vive como se a praia e o campo existissem juntos dentro dela. Se alimenta de forma regrada, mas sem horários fixos todos os dias. Se exercita, mas nunca levantou um halter. Aliás, ela escreve, mas nem imagina como se escreveria isso. “Halter”. Pra quê?

Ela vive o mês inteiro e o outro e outro, sem feriados, sem se importar se é até 30 ou até 31. É a mesma sensação que tenho ao ler esse livro que me leva para um lugar em que sábado e segunda são dias igualmente gostosos.


Comentários