As peças que nos movimentam


 

Minha vó me ensinou a jogar dama e torrinha. Meu tio me ensinou a jogar xadrez. Minha mãe me deu um mini tabuleiro de xadrez quando eu era criança. Ele dobrava ao meio e virava a caixinha que guardava as pequenas peças de ímã que grudavam na superfície do quadriculado preto e branco.

Quando um pouco mais velho, por volta dos dez anos de idade, jogava xadrez no computador que ficava no quarto do meu tio - emprestado de um amigo dele -, na casa da minha avó, onde eu ficava durante o dia, quando não estava em aula, enquanto meus pais trabalhavam. Depois disso, veio o dominó. Mas não o tradicional. Era um jogo de cem peças, jogado com toda a família reunida, que chamávamos de “Pé de Galinha”.

Ainda pré-adolescente, lembro de noites durante a semana e no fim de semana na casa da minha avó em que jogávamos meus pais, tios, tias, avó e primas. O jogo durava nove rodadas. Levava horas. Ganhava quem tivesse menos pontos – ou o menor número na soma das peças pretas de bolinhas brancas.

Essa memória maravilhosa me veio depois de assistir à minissérie O Gambito da Rainha, na Netflix. Na produção, uma garota órfã aprende a jogar xadrez com o zelador do orfanato e se torna uma grande enxadrista – nome dado para quem joga e estuda xadrez, e que ouvi pela primeira vez com a série.

Os sete episódios são sensacionais, de bom gosto, bem cuidados. Terminei de assistir com o pensamento de como as peças das nossas vidas contribuem para o nosso jogo. Da infância no orfanato a quem a protagonista Beth se torna, a importância das pessoas que passaram por sua trajetória.

Meu tempo de educação escolar foi praticamente perdido. Escolas públicas em que os professores mais faltavam que ensinavam, especialmente da quinta até a oitava série entre os anos noventa e dois mil. O colegial, nem conto. Estudei à noite porque trabalhava durante o dia.

Sou desnorteado em Geografia e nada periódico em Química. Mas algumas peças me movimentaram neste tabuleiro escolar.

A professora Cristine, sim, com E de Exemplo, nunca faltava. Me ensinou tudo de gramática, revisou e comentou todas as minhas redações na quinta e na sexta série. Não sei onde ela foi parar durante a sétima e oitava. Fez falta.

Certa vez ela até me pediu para ler um dos meus textos de pé diante de toda a sala – coisa que nunca aconteceu antes ou depois desse episódio – como forma de me reconhecer e incentivar. Riscava parágrafos e corrigia conjugações com firmeza e doçura ao mesmo tempo. Lembro do seu cabelo ruivo cacheado, pele muito branca, batom vinho revezando com o vermelho e uma risada muito comportada.

Ainda no ensino médio, a dona Maximínia me deu aula de Ciências e Biologia. Japonesa, baixinha, cabelo de “hominho” – como chamavam à época e nunca chamaria ao presente - rosto redondo, nunca sorria, quando a vi sorrindo, suas bochechas subiam e seus olhos sumiam. Um dia soltou uma risada em uma de suas aulas e eu descobri que morava um urso dentro dela, de tão alta e grave aquela gargalhada.

Ela me mostrou que a Lua é menor do que a Terra, me fazendo pintar Luas como bolinhas de isopor e depois me pedindo para colar essas Luas umas às outras até chegar ao tamanho do que seria a proporção da Terra – foram 80 bolinhas coladas formando um círculo meio deformado e depois tive que pintar isso de azul com partes verdes fazendo essas Luas se tornarem visualmente a Terra. Agora com o Google não precisamos de isopor e guache para aprender isso.

No colegial, à noite, Valéria era a sargento que todos odiavam. Eu amava. Mais velha. Zero maquiagem. Cabelo longo, castanho claro misturado com grisalhos, sempre em rabo de cavalo. Ela era extremamente prática. Começa a aula dizendo “Eu também trabalho o dia inteiro e estou tão cansada ou mais do que vocês, então, quem quiser, já pode sair da sala que eu vou dar presença pra todo mundo na chamada, assim só fica na sala quem estiver interessado”. Era uma limpa. Eu ficava. A aula rendia. Sem estresse.

Mais que me apresentar rabiscos na lousa e exercícios nos livros, essas pessoas me mostraram comportamentos que me inspiraram para além da escola.

Assim como minha mãe me inspirava quando me dizia como ser educado na casa das pessoas e em ocasiões diversas; meu pai quando repassava a lição de casa comigo entre a pré-escola e da primeira à quarta série, e depois quando me incentivava a começar a trabalhar; meu tio quando me deixava mexer no computador que nem era dele ou enquanto ele ouvia suas fitas cassetes com as quais aprendia inglês em casa, sozinho, sem professor.

São referências que nos tornam jogadores melhores. 

Meu vô colocava disquinhos de vinil coloridos em uma vitrola para eu e minha prima ouvirmos historinhas infantis. Minha vó jogava minha criatividade lá em cima! Me incentivava a desenhar, colorir, recortar e colar.

Foram amigos que me cobraram presença quando me afastei. Chefes que me apertaram quando errei e parabenizaram quando me superei. E mesmo aquele namoro que me fez chorar na mesma proporção que sorrir. Peças e mais peças que me movimentaram até aqui.

Assim como na história da minissérie, tudo isso me mostrou que não somos aquilo que nascemos, que não precisamos ser o que foi imposto para a gente. Nossa referência, não é a nossa essência.

É você quem escolhe as suas jogadas.

A melhor sensação do mundo é ter o entendimento de que a gente se movimenta neste tabuleiro conforme o nosso ritmo e a nossa vontade. Todas essas peças dos nossos passado e presente, que escolhemos para nos inspirar e para jogar ao lado, é o que faz da gente campeões nesse grande e imprevisível torneio.


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