Sobras e faltas

 
 
Com o tempo mais fresco, nublado e abençoado pela chuva, fico na dúvida entre andar com os vidros do carro abertos ou fechados. Dúvida essa que durou só até chegar à rua seguinte a da saída da minha casa.

Com os vidros abaixados para curtir o climinha, passou de moto um ser-erro em uma moto estourando o escapamento às sete e quinze da manhã. Perfil: um obeso de meia-idade em uma moto imensa amarela daquelas que parece que saiu de uma cena dos Power Rangers.

Falta noção e sobra necessidade de autoafirmação. Claramente um tipo de compensação.

Na mesma garagem da motona estão caminhonetes, Toro e Montanas dirigidas por caras que não seguem as leis de trânsito. Atravessam o Pare, o vermelho, cortam faixas sem dar seta e criam uma terceira fila em meio às únicas duas faixas da rua. Falta senso de comunidade e sobram sentimentos como superioridade e ansiedade.

Dia desses uma amiga foi ao aniversário de um ficante. Levou uma amiga. Adivinha? Não só começou a dar de cima da outra como depois foi encontrar as duas em um bar para ficar falando de uma terceira. Perfil: um ex-gordo que, provavelmente depois de muito vídeo no YouTube sobre “rotinas de sucesso”, começou a malhar e a lutar para se afirmar. Faltam ética, maturidade e humildade. Sobram bobices e a ideia de que acha que sabe trepar de verdade.

Enquanto tomava café em uma conveniência antes de começar a escrever este texto, entrou uma gay saradinha de shortinho branco no friozinho só para marcar seu bumbunzinho. O silicone ali gritava e a cara claramente harmonizada. Bunda de tudo. Cara de nada. Sobra padrão. Falta o que poderia ser o verdadeiro orgulho de uma diferenciação.

Enquanto isso as mulheres se atolam em cílios e bocão. Sobra necessidade de se encaixarem. Falta a coragem de se conhecerem para se destacarem.

Minutos depois, outra gay pede seu café enquanto chama as três atendentes de amiga. Uma delas pergunta porque ele não foi à conveniência ontem. “Eu estava em São Paulo”. “Trabalhando?”. “Não, fui pro Lolla (Lollapalooza)... Meti um atestado e fui pra lá”. Sobram tantas coisas bestas que não dá para listar. Entre tudo que falta, penso na responsabilidade e nos banheiros no evento.

Em mim, faltam a paciência para conviver e a vontade de sair da minha casa. Falta ânimo para acreditar em algo novo, diferente, refrescante, com bom senso, autenticidade, verdade e noção no ser humano. Sobram histórias que envolvem o ser-errôneo.

Com o passar do tempo, vejo o quanto só nos restam as sobras. Já reparou?

Sobra para você o trabalho que antes era feito por três pessoas. Sobra para você as pessoas fodidas pela carência e pela falta de amor próprio. Sobra o filho feito a dois e empurrado para um. Sobra o oferecimento de relacionamentos que desejam te tirar do seu próprio centro para você viver aquilo que falta no outro.

Sobra a vontade de viver um namoro ao mesmo tempo que também sobram neuroses e inseguranças para curti-lo plenamente quando ele finalmente chega para você.

Sobra gravidez tentando resolver a falta que existe em um casamento. Sobram bodas de prata e de outro pela falta de reconhecimento do fim do relacionamento.

E assim seguimos vivendo alegando falta de tempo enquanto sobra a busca incessante por um preenchimento que mal temos entendimento.
 

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