Morder ou ser mordido



Enquanto eu o beijava, ele me afastou com uma das mãos no meu peito e disse: "Não, sem morder". Então eu voltei a beijá-lo de um jeito, sem as pequenas mordidas em sua boca, que um nem outro queria que a noite terminasse. Foi o encaixe. A química. Aquele cheiro que sentimos que vem do pescoço do outro, sem perfume, mas que só se sente em momentos como este.

Dias depois, em sua casa. Lá estava ela, toda esparramada na cama, como uma esposa que marca o seu território, sabendo que seu companheiro costuma sair com outros. Um gata peluda, meio rajada, linda, mas que me olhava com mal humor - mesmo que não seja este o sentimento, gatos, todos, olham com descaso e prepotência. Eu amo isso neles. Eu temo isso neles.

Quanto tinha sete anos, enquanto assistia TV na casa de um vizinho, dei de fazer carinho na nuca de sua gata, Cherie, não sei se a escrita era essa, mas não esqueço a agarrada com unhas e dentes que ela deu em minha mão, sem soltar, enquanto a minha pressão ia parar no pé de chinelo Rider de tira usado nos anos noventa.

Na mesma infância, do outro lado da rua, outro amigo-vizinho colecionava três gatos. Um paradão, outro que sumia mais do que ficava na casa e um terceiro que era a reencarnação do 666. Se chamava Chuvisco, mas tenho certeza que sua mãe biológica que o abandonou, o batizou como Satanás.

O gato não podia me ver. Se agachava em posição de ataque embaixo da mesa, movimentando os cotovelos enquanto se ajeitava e balançando lentamente o rabo. Posição de ataque. Era eu passar e ele avançava em meu tornozelo, agarrando minha panturrilha com as duas patas de unhas para fora e abocanhando meu calcanhar sem sinal de entender os meus berros "Para, Chuvisco! Sai! Passa!". Trauma.

Voltando para os dias atuais, na cama do cara que pede beijo sem mordida, vi sua gata se esfregar em mim até que ele a puxou com uma das mãos e falou "Fique tranquilo, ela não vai te morder", quando uma armação de inspiração para este texto fez com que ela mordesse o próprio dono.

Depois de me dopar de antialérgico em sua casa - pois não basta o medo, tem também a alergia a gatos - fique pensando, até que ponto ao conhecermos uma pessoa para nos relacionarmos, é melhor morder ou ser mordido?

Se o primeiro contato que começou com um pedido de não mordida pode se tornar um namoro de mostrar os dentes, vale a pena tentar superar o trauma de gatos ao conviver com a felina do cara?

Se pensar na boa vida de solteiro como o momento que estou, é vantagem considerar ser mordido pela gata em nome do carinho do cara por seu pet e a minha companhia como sua nova estimação?

Ou seria viagem demais achar que podemos ficar juntos sem ter a dor de uma mordida da sua gata vez ou outra?

No geral, ao pensarmos em entrar num relacionamento, o que devemos esperar: a segurança ou a preparação para dores que queremos evitar?

Entre morder e ser mordido, eu prefiro pensar que existe uma relação em que eu ofereça beijos sem medo e que, se houver mordias do tipo de gatos, que elas, pelo menos, sejam banguelas.


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