Eu tinha



Eu tinha que almoçar antes de ir para a escola. Minha vó e minha tia tentavam de tudo para essa proeza: eu comer. De chinelo Havaiana colocado em cima da mesa, ao lado do prato, até dizer que, se eu não comesse, não iria para a escola e meu pai ia ficar bravo porque eu faltei.

Eu tinha que comer. Depois eu tinha que tomar Biotônico porque eu tinha que comer.

Quase não almocei antes das aulas e então passei a estudar à tarde. Eu tinha que comer quando chegasse.

Eu tinha um vizinho que tinha um Super Nintendo. Eu tinha que jogar!

Mas antes eu tinha que fazer a minha lição de casa. Então eu tinha que correr com a minha lição porque eu tinha que jogar.

Eu tinha que ser rápido!

Porque eu tinha que estar de banho tomado às quatro e meia da tarde porque meu pai tinha que me buscar na minha vó para depois pegarmos a minha mãe na saída do trabalho.

Se meu pai não acabasse o seu serviço a tempo de nos buscar, minha mãe tinha que ir a pé até a casa da minha vó, depois eu e ela tínhamos que ir a pé até a rodoviária porque a gente tinha que ir de ônibus para casa.

Na nossa casa, minha mãe tinha que fazer a janta. E eu tinha hora para dormir. Depois tive minha irmã. Ela também tinha hora para dormir.

No outro dia, eu tinha que acordar na primeira vez que a minha mãe me chamasse ao acender a luz na porta do quarto.

Eu tinha que preparar meu leite com Nescau e ia direto para a escola. Quando saía da aula, eu tinha que ir para a casa da minha vó e tinha que arrumar o cabelo da minha irmã porque agora era ela que tinha que ir para a escola. Eu tinha que levá-la.

Daí tinha meu almoço, lição de casa, ir para a rua. Então eu tinha que buscá-la. Minha irmã. Tinha o banho das quatro e meia. Meu pai tinha que nos buscar porque ele tinha que buscar a minha mãe.

Tinha um ciclo.

Depois de um tempo, eu tinha aula de inglês. De manhã. Porque à tarde, eu tinha o ensino médio.

Na escola e no curso, eu tinha que tirar A ou B. Meu pai tinha que ver. Afinal, eu não tinha que trabalhar, então, tinha que estudar.

Meu pai tinha que ir nas reuniões porque minha mãe, como secretária, tinha que estar lá, para a fofa da chefe, o tempo todo. Ela tinha que trabalhar. Meu pai, como pedreiro, tinha que ralar, mas podia se adequar. Ouvia sempre o mesmo: “O Matheus é bom. Só conversa demais na aula”. Mas eu tinha que falar.

O que eu não tinha que fazer mas eu fazia, era limpar a casa da minha avó. Tinha que ser uma vez na semana. Ela tinha que me dar cinco reais por mês, afinal, eu tinha meus gibis para comprar. “O Homem-aranha” e “A Teia do Aranha”. Tinham os dois, todo mês. Dois reais e cinquenta centavos, cada. Eu já tinha os cinco da faxina. Se eu passasse a roupa da minha vó, eu tinha mais cinco.

Eu também não tinha, mas gostava do que vinha: entregar panfleto. Supermercado J-Bessa, Onde sua Economia Começa. Eu tinha que entregar os folhetos nas casas da Vila Tibério. Tinha cinco reais por período de entrega. Eu tinha que entregar enquanto não tinha que ir para a escola. Mas com isso eu tinha mais gibis. Os vendidos como usados na banca, custavam cinquenta centavos. Eu tinha aos montes!

Quando fiz 16 anos, eu tinha que começar a trabalhar... Mas agora eu tenho que parar de falar. Quem sabe eu tenha que continuar num próximo. Agora só sei que, graças a tudo o que eu tinha, eu tenho o que tenho.

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