Comi meu croissant pensando no
peru. Deixei a chave do carro com o frentista que o abastecia e que já me
conhece pelo cafezinho de cada dia ali no posto. Entrei na conveniência e
perguntei por ele. “Hoje não tem de peru, meu bem, só quatro queijos”. Pra mim,
tudo que é recheado apenas com diferentes tipos de queijo é uma enganação para
te jogar algo meloso e sem personalidade. Mas foi ele mesmo. O sabor mais
adequado àquela falta de gosto deste meu café da manhã.
Enquanto bebia o coado sem açúcar
e o croissant sem peru, conversava no wtsapp com uma amiga sobre as nossas
impressões para o filme A Baleia. Em meio aos pontos que concordamos e não, o
sabor de uma relação deliciosa encheu o meu pratinho, transbordou aquele pires
sob a xícara e me desjejuou com a reflexão: por que ela não tem peru?
Os dois solteiros, amigos há mais
de dez anos, nossa troca cada vez mais madura e profunda, mas ela sem peru e eu
sem gostar da fruta.
Comentei minha frustração e ela: “Talvez
fosse a solução”. Fechei com “Seria perfeito demais. Por isso não é possível”.
Daqui para frente, alerta Meus Conceitos,
com base em minhas experiências, portanto, não são “pré” conceitos.
Geralmente, quando se tem o peru,
não temos a conversa mais profunda, reflexiva, crítica, analítica, cultural. Quem
tem peru e deseja mais um, provavelmente assistiria A Baleia só para ver se o
galã do filme A Múmia envelheceu mal. Ou pelo interesse em olhar para a vida de
personagem obeso e se sentir ainda mais gostoso nas fotos de shorts e camiseta
levantados no espelho da Smart Fit ou da recepção de qualquer prédio para
mostrar suas coxas e abdômen, porque cérebro e autenticidade não estão inclusos
no plano Black - mas a demonstração de perus no vestiário da academia, sim.
Meu dilema é esse: sou do peru
mas não me identifico com essa receita. Gosto de peru, mas não sou fã de Cher.
Sinto falta de peru, mas não sinto a menor falta de mais uma apresentação da
Beyoncé com um ventilador soprando seu cabelo.
Das poucas vezes que estive em
uma roda de apaixonados por perus, não faço a menor questão de saber quem pegou
quem ou encontrar novos perus em app de pegação com um álbum de fotos privadas
que mostram meu peru de cima para baixo e minha jaca de baixo para cima. Menos
ainda discutir se aquele outro que também curte um peru usa perfume importado
ou não, se tem um iPhone na mão, tênis e roupas de marcas compradas sem
dinheiro só para fazer carão. São assuntos comuns entre os peru-fãs nos
intervalos entre a balada gay semanal.
Botox. Grifes. A nova série gay
da Netflix. O funk bagaceiro cantado em coro. As lantejoulas para colar na cara
enquanto se droga e enche a cara. Depilação. Chuca. Prep. “Tem foto do peru?”. E
do koo? Ativo. Passivo. Flex. Trans. Não-binário. Os mesmos assuntos. Parece
até menos interessante do que uma época em que se vivia mais no armário. Tudo
que poderia ser tão libertador para sermos quem somos e cada vez mais diferentes,
acaba criando um grupo do mesmo tipo de gente.
Por isso prefiro as conversas com
minhas amigas e família, e procuro pelo peru no croissant que eu posso botar
inteiro na boca em um cinema, numa conversa mais abrangente sobre a vida ou em
uma livraria, o que no meio gay raramente aconteceria.
Comentários
Vc me fez pensar melhor no meu peru 😘