Os curvados

 


 
Está todo mundo curvado. Já notou? Só me dei conta ontem, quando curvei minha cabeça para alcançar minha xícara de café com a boca na conveniência do posto em que costumo abastecer meu pratão e, ao voltar o olhar para a frente, cinco pessoas distribuídas ali continuavam com seus olhares para baixo, para suas telas, enquanto seus cafés esfriavam sobre suas mesas. Um clima torto, de ladeira abaixo, sabe?
Vi mais dessa dessa curvatura quando observei, pela janela do meu carro, outras pessoas curvadas olhando para os celulares no rumo do peito, diante do volante. Inclusive os motoqueiros.
Olha-se cada vez menos para a frente e o efeito disso são as pessoas se fechando cada vez mais naquilo que lhes convém, numa postura em que não se arriscam.
NAS EMPRESAS, ouço toda semana sobre gente que só abre a câmera na reunião porque é obrigada pela firma, que, no presencial, entra muda e sai calada, quer dizer, conformada, da sequência de reuniões mal planejadas.
Falar nos expõe. E quem quer exposição sem um bom retorno garantido?
Dia desses mandei o link de um vídeo em um grupo de wtsapp e uma amiga reagiu com um “joinha” seguido por um "obrigada". O conteúdo era o trailer de um reality show absurdo em que uma pessoa seleciona outra para conhecer entre candidatos que primeiro mostram seu pau ou sua xana antes mesmo de sua cara ou sua voz. A reação a isso foi um like junto de um tipo de “atenciosamente”, duas formas de reagir sem reação. Talvez mais um mérito do mundo corporativo e toda a sua formação.
Prestenção: quem se curva tende a escapar dos olhares da demissão.
Uma colega me mandou mensagem dizendo ter sido demitida por um story que ela postou em um sábado à noite. O Érre A-Ga cada vez mais Gagá a chamou para o fédeback na segunda e perguntou se ela achava aquilo adequado... A demitiu dias depois sem dizer que era por aquilo. Justificaram no tal “desempenho”. Mais subjetivo impossível, porém usado com engenho (aparentemente) imbatível.
Respostas polidas e impessoais. Posturas cada vez mais rasas e artificiais. São características dos curvados, observe os sinais.
As recrutadoras vão falar de paixão e ousadia, desde que, na empresa, não tumultue o dia a dia confortável da diretoria.
Faça a integração e depois entenda o receitão: siga de cabeça baixa, peito fechado, ombros pesados, conformados e silenciados, mas se mostre um fã da empresa, um lover, apaixonado.
E assim o povão vai se curvando, se adaptando e mesmo assim, se desligando. Das empresas e, pior ainda, de si mesmos.
É surreal como ser tudo que se verdadeiramente é passou a dar mais trabalho do que se adequar ao que o outro quer.
 
(Texto escrito originalmente para o Linkedin)

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